Um dos exemplos clássicos de treinamento de sistemas de inteligência artificial (IA) é o uso de fotos para ensinar uma rede neural a identificar padrões. Funciona assim: você mostra para o sistema de IA milhares de fotos de cachorros ou gatos e informa ao sistema quais imagens contém um cachorro e quais contém um gato. Em seguida, você mostra uma foto e pergunta se a foto é de um cachorro ou um gato. E ele acerta.
O interessante nesses sistemas é que você não diz as características de um cachorro ou um gato, o sistema descobre sozinho essas características e aprende a identificar os animais. É muito parecido com a maneira como uma criança aprende a distinguir cachorros de gatos. Apontamos para o bicho e dizemos “gato” ou “cachorro” e depois de um tempo a criança aponta para o animal e diz “gato”. Tanto no caso da rede neural quanto no caso da criança não sabemos exatamente o que a rede neural ou o cérebro usa para fazer a distinção, mas o fato é que aprendem e acertam.
Sistema de IA ajuda a identificar, no momento do parto, se uma mulher vai ou não sofrer de depressão pós-parto. Foto: natalialeb/Adobe Stock
Agora esse sistema de treinamento está sendo usado na medicina. Um grupo de cientistas treinou uma rede neural para identificar mulheres com risco de depressão pós-parto. Esse tipo de depressão aparece em 15% das mulheres logo após o parto. Ela afeta as mulheres num período difícil da vida, a chegada de um bebê na casa, é facilmente tratável, mas se não tratada pode levar, em alguns casos, ao suicídio.
Os cientistas treinaram um sistema de IA para identificar mulheres com risco de apresentar depressão pós-parto logo após o parto, antes de saírem do hospital. E para isso usaram a mesma técnica usada para treinar um sistema a separar gatos de cachorros.
Foram identificadas 98.620 mulheres que deram à luz em diversos hospitais entre janeiro de 2017 e dezembro de 2022. A totalidade da ficha clínica de cada uma dessas mulheres foi obtida. Foram retiradas da amostra as mulheres que não tiveram acompanhamento pré-natal e as mulheres que já haviam tido episódios de depressão antes da gravidez (essas sabidamente têm um maior risco). Também foram retiradas da amostra as mulheres que não tinham sido avaliadas quanto a sua saúde mental.
Feito isso sobraram 29.168 partos, a maioria não tinha tido depressão (91%) e o resto (9%) tinha apresentado depressão pós-parto. Essa amostra foi dividida em dois subgrupos de aproximadamente 15.000 partos. Um subgrupo foi usado para treinar o sistema de rede neural e o outro para testar o sistema após ele ter sido treinado.
Os 15.018 históricos médicos, que incluíam todos os dados coletados durante a vida dessas mulheres, como altura, peso, raça, histórico de doenças, medicamentos, foram usados para treinar sistemas de IA. É como se fossem as fotos de cachorros e gatos do exemplo inicial. O sistema foi informado dos partos em que havia ocorrido depressão pós-parto e em quais isso não tinha ocorrido (como se você informasse se a foto era de um cachorro ou um gato). E com base nesses dados o sistema aprendeu a identificar as mulheres que apresentaram depressão.
Os outros 14.150 históricos médicos foram usados para verificar se o sistema era capaz de identificar corretamente as mulheres que corriam risco de depressão. Para isso, o histórico de cada mulher foi submetido, um a um, ao sistema sem informar se ocorrera ou não depressão e o sistema classificava a mulher como tendo sofrido ou não de depressão pós-parto. Finalmente a resposta do sistema de IA era comparada com a informação real (se ela tinha ou não sofrido de depressão). Dessa maneira é possível verificar quão bem o sistema classificava cada parto.
Essa comparação mostrou que o sistema classifica corretamente 92% das mulheres que não tinham tido depressão como de baixo risco (92% das fotos de gatos eram classificadas como gatos). Mas, a precisão foi bem menor para os casos com depressão: somente 28% dos casos com depressão foram identificados.
Esses dados demonstram que esse sistema de IA já é o melhor sistema para identificar, no momento do parto, se uma mulher vai ou não sofrer de depressão pós-parto. Ele está longe de ser perfeito, mas já vai ajudar a identificar as mulheres que precisam de acompanhamento cuidadoso no pós-parto.
Seguramente esses sistemas de IA se tornarão melhores nos próximos anos e já dá para imaginar o impacto que eles terão na determinação dos prognósticos para um número enorme de doenças. É uma pena que nesses sistemas não seja possível saber como a classificação é feita. Se um dia isso se tornar possível poderemos usar essa técnica para identificar individualmente os fatores de risco. E saberemos como nosso cérebro separa um cachorro de um gato.
Mais informações: Stratifying Risk for Postpartum Depression at Time of Hospital Discharge. American Journal of Psychiatry https://doi.org/10.1176/appi.ajp.20240381