Como as atmosferas se formam e como elas se perdem? Foto: Kristina Armitage/Quanta Magazine
No fim da década de 1970, Titã, a estranha lua de Saturno, um mundo laranja e enevoado, esperava visitantes: primeiro, a sonda Pioneer 11 da Nasa, depois a Voyager.
A maioria das luas não tem ar ou apresenta pouco mais que véus gasosos e transparentes. Mas Titã está envolta por um cobertor de nitrogênio e metano tão espesso que, com um par de asas e bom impulso, astronautas conseguiriam voar só batendo os braços.
Poucos anos depois que as sondas passaram por Titã, Kevin Zahnle, cientista planetário do Ames Research Center da Nasa, a agência espacial americana, refletia sobre a atmosfera da lua quando se fez uma pergunta enganosamente simples sobre como os planetas funcionam: “Por que tem ar ali?”
A maioria dos cientistas achava que a presença de atmosferas ao redor dos planetas – e da estranha lua Titã – era uma questão de materiais iniciais. Se um planeta em crescimento engolisse bastante material facilmente vaporizável, teria atmosfera. Caso contrário, não teria.
Os cientistas também sabiam que as atmosferas se agarram aos mundos por causa da gravidade e que os mundos muito pequenos não têm peso suficiente para reter ar. Mas aí observações de Marte sugeriram que, para surpresa geral, o planeta havia perdido quantidades substanciais de ar.
Enquanto Zahnle analisava os dados de todo o sistema solar, começou a se perguntar se a perda atmosférica – e não os materiais iniciais – poderia determinar se os mundos reteriam ar. Ele colocou dezenas de corpos do sistema solar em um gráfico simples que comparava a velocidade de escape de um mundo – uma medida de sua gravidade – com a quantidade de luz solar que recebia conforme as atmosferas se esvaiam sob o sol.
O gráfico revelou uma linha nítida separando rochas nuas e bolas de neve de mundos envoltos em gás, um limite que ele chamou de linha costeira cósmica. “Eu estava conscientemente tentando invocar uma imagem que Carl Sagan teria usado”, disse.
No início, a linha costeira cósmica de Zahnle foi praticamente ignorada. A ideia de escape, ele disse, não era muito popular: os cientistas estavam mais interessados em saber como os planetas haviam formado atmosferas, não em como as tinham perdido. Mas, décadas depois, a descoberta de milhares de mundos além do nosso sistema solar deu nova vida àquela ideia negligenciada.
Começou a busca por mundos alienígenas habitáveis – e, quem sabe, por sinais de vida em suas atmosferas. Para ter sucesso, os caçadores de extraterrestres precisarão encontrar planetas com ar. E a linha costeira cósmica, se for realmente cósmica e se estender a outros sistemas estelares, pode lhes mostrar por onde começar essa busca.
Kevin Zahnle teve a ideia da linha costeira cósmica na década de 1980. “Eu estava conscientemente tentando invocar uma imagem que Carl Sagan teria desenhado.” Foto: Cortesia de Kevin Zahnle
Agora os cientistas estão usando o Telescópio Espacial James Webb da Nasa para testar o conceito. O telescópio já farejou ar ao redor de planetas rochosos orbitando um punhado de estrelas pequenas e frias. E este ano vai embarcar em uma pesquisa imensa com dezenas de outros mundos rochosos.
“É uma questão tão interessante que todo mundo, acho eu, meio que se ligou nela”, disse o astrofísico Kevin Stevenson, do Laboratório de Física Aplicada da Universidade Johns Hopkins. E finalmente, disse, temos tecnologia para respondê-la.
Como perder uma atmosfera
Despojada de seu nome pomposo, a linha costeira cósmica pode não parecer particularmente interessante. Mas os planetas são objetos complicados e de vida muito longa. Até as perguntas mais simples sobre sua evolução são surpreendentemente profundas, e as respostas têm implicações importantes para a habitabilidade e a possibilidade de vida. Para Zahnle, linha costeira é uma fronteira metafórica. “Planetas com atmosferas finas constituem uma espécie de praia entre um oceano profundo e sem vida de mundos gasosos e um planalto morto de mundos desérticos sem ar”, disse.
As atmosferas, por definição, ficam na parte externa dos planetas. Mas o ar que encontramos ao redor dos mundos rochosos provavelmente começou como materiais facilmente vaporizáveis em suas partes internas, antes que os planetas jovens e quentes efetivamente fervessem esses voláteis para fora das rochas.
Se um planeta constrói sua atmosfera desse jeito, tudo acontece rápido, pelo menos em termos cósmicos: a maior parte da ação termina depois de algumas centenas de milhões de anos. A linha costeira de Zahnle analisa o que resta depois dessa janela crítica e se concentra em como o escape atmosférico – e não os materiais iniciais – determina se os gases vão conseguir se agarrar a um mundo em maturação.
Para escapar do planeta, uma partícula atmosférica precisa exceder uma velocidade crítica conhecida como velocidade de escape. Quanto maior a atração gravitacional do planeta, mais rápido a partícula precisa voar para se libertar.
Um jeito de impulsionar partículas acima da velocidade de escape é com luz solar, que aquece atmosferas e aumenta as chances de que algumas partículas mais rápidas se libertem. A linha costeira cósmica original de Zahnle capturou o equilíbrio entre a luz das estrelas e a velocidade de escape – e usou essa relação para distinguir planetas sem ar e planetas cobertos de gás em nosso sistema solar. Mas há mais de um jeito de despir um planeta no nosso sistema solar.
Tem a luz solar, disse o cientista planetário David Catling, da Universidade de Washington, e tem os impactos planetários.
Se atingir um planeta com força suficiente com um asteroide ou cometa, o impacto pode literalmente explodir pedaços da atmosfera. E quanto mais próximo o planeta orbita sua estrela, mais forte esses projéteis o atingem, em média. Quando Zahnle calculou esse fator de impacto, pôde traçar uma linha separando os mundos arejados e os sem ar no sistema solar.
Um tanto paradoxalmente, surgiu um problema: ambas as linhas costeiras funcionavam igualmente bem. Ele não sabia dizer qual processo era mais importante.
Por quase uma década, Zahnle deixou esse problema de lado. Mas, em meados da década de 2010, os exoplanetas começaram a “aparecer aos montes”, disse. E com essas novas observações surgiu uma nova oportunidade – e uma nova linha costeira.
A oportunidade e o perigo
Os astrônomos já identificaram quase 6 mil planetas orbitando uma coleção de sóis. Alguns até esperam usar o James Webb para descrever um punhado de mundos potencialmente habitáveis. Mas o telescópio não foi projetado para espiar exoplanetas, que nem sequer tinham sido descobertos quando foi concebido. E ele tem problemas específicos para enxergar planetas escuros e rochosos que orbitam estrelas maiores e mais brilhantes. Mundos como a Terra.
O Webb pode, no entanto, estudar planetas rochosos em órbitas temperadas ao redor de estrelas pequenas e fracas chamadas anãs M, que por acaso são as estrelas mais abundantes na nossa galáxia. Jacob Lustig-Yaeger, que trabalha com Stevenson no Laboratório de Física Aplicada Johns Hopkins, chama isso de “a oportunidade das anãs M”.
“É a chance que temos de procurar atmosferas ao redor de planetas pequenos, do tamanho da Terra – mas agora ao redor de estrelas pequenas”, disse Lustig-Yaeger. “Temos de equilibrar isso com o que começo a chamar de ‘perigo das anãs M’”.
As anãs M são pequenas e temperamentais – os cachorrinhos de colo da astronomia. Em seus primeiros cem milhões de anos de vida, essas pequenas estrelas agitadas produzem muita luz em comprimentos de onda ultravioleta e raios X de alta energia (XUV).
Mesmo depois de se acalmarem, ainda emitem uma fração maior de luz XUV do que estrelas semelhantes ao Sol. Essa radiação pode significar problemas para as atmosferas. Alguns cientistas suspeitam que, quando se trata de desaparecimento de ar, o que realmente importa é o XUV, não a luz solar total: ele queima as camadas mais altas da atmosfera de um planeta, onde é mais fácil para as partículas de gás escaparem.
“Esses planetas foram só torrados”, disse Lustig-Yaeger.
Enquanto os pesquisadores consideravam se tais mundos estrelados poderiam plausivelmente segurar suas atmosferas, Zahnle se uniu a Catling para estender o conceito de linha costeira cósmica. Em 2017, publicaram novos gráficos das linhas costeiras de luz solar e de impacto, dessa vez com centenas de exoplanetas conhecidos. E traçaram uma terceira linha costeira derivada da radiação XUV total que um planeta recebe ao longo da vida.
David Catling, astrônomo da Universidade de Washington, está mapeando as diferentes formas que a costa cósmica pode assumir. Foto: Cortesia de David Catling
Os três limites distinguiram os planetas do sistema solar igualmente bem. Mas as linhas costeiras de XUV e de luz solar cortam faixas muito diferentes na população de planetas rochosos orbitando anãs M, com mais mundos caindo no lado sem ar da linha divisória de XUV.
“Não sabemos exatamente onde fica a linha costeira cósmica para as anãs M”, disse Eliza Kempton, astrônoma da Universidade de Maryland. E é importante descobrir isso, ela afirmou, porque antes de tentarmos encontrar sinais de vida em mundos habitáveis, precisamos fazer a pergunta: “Planetas que podemos observar com o James Webb têm atmosfera, para começo de conversa?”
Um mapa da linha costeira
Essa questão capturou as manchetes e a imaginação popular em 2017, quando astrônomos avistaram um lote de sete planetas aproximadamente do tamanho da Terra girando em torno da estrela anã vermelha TRAPPIST-1. Esse sistema planetário incomum parecia um campo de exploração perfeito. Não apenas três dos planetas estavam na zona habitável da estrela, como todos os sete acabariam entrando na mira do Webb. Ao vasculhar as atmosferas dos planetas, os astrobiólogos esperavam procurar as impressões digitais da vida.
Mas, claro, isso só seria possível se os planetas tivessem ar.
Eliza Kempton, astrônoma da Universidade de Maryland, está procurando atmosferas em planetas que orbitam uma importante classe de estrelas chamadas anãs M. Foto: Universidade de Maryland
O jeito mais fácil de detectar uma atmosfera é medindo a temperatura do planeta, disse Jacob Bean, astrônomo da Universidade de Chicago. Ao comparar as temperaturas nos lados diurno e noturno do planeta, como o JWST está fazendo agora com mundos quentes e rochosos, os cientistas podem inferir se há uma atmosfera distribuindo calor pelo planeta.
De início, quando os astrônomos usaram o JWST para medir as temperaturas de TRAPPIST-1 B e C, os planetas mais internos do sistema, puderam descartar atmosferas espessas – o que não é surpresa, porque esses mundos ficam no lado sem ar de todas as três linhas costeiras. Kempton, Bean e seus colegas também descartaram atmosferas espessas em outros planetas, como Gl 486b e GJ 1132b – ambos planetas anões M quentes e rochosos que os gráficos de Zahnle sugeriram que não teriam ar.
Mas observações mais recentes de TRAPPIST-1 B são consistentes com uma superfície nua – mas geologicamente ativa – ou uma atmosfera nebulosa de dióxido de carbono. E observações do JWST de um planeta mais frio, o LTT 1445 A B, são similarmente “obscuras”, disse Bean. Mas esse mundo pode ser instrutivo: cai em lados opostos das linhas costeiras de XUV e de luz solar e pode ajudar a dizer qual delas é mais importante.
Para outros mundos mais frios como o nosso, disse Bean, encontrar ar requer uma técnica diferente.
Quando um planeta passa entre sua estrela e a Terra, a luz da estrela brilha por um breve momento através de qualquer atmosfera que possa existir. Os astrônomos podem peneirar essa luz estelar e procurar impressões digitais espectrais que indiquem a composição da atmosfera. Mas esse método – espectroscopia de trânsito – às vezes tem dificuldade de distinguir atmosferas nubladas de atmosferas ausentes – e manchas solares podem complicar ainda mais as interpretações.
Usando esse método, Lustig-Yaeger e Stevenson reavaliam a linha costeira cósmica mirando o James Webb em cinco mundos rochosos mais frios, como o frio TRAPPIST-1 H. Até agora, publicaram observações de quatro mundos que ficam perto da linha costeira de luz solar total, mas estão bem no fundo do deserto sem ar da linha costeira XUV. Dois parecem sem ar, mas uma atmosfera fina, nebulosa ou nublada pode ter escapado da detecção. Os outros dois mostram indícios de atmosferas úmidas, mas essas observações poderiam ser facilmente explicadas por manchas solares.
Sem dúvida, encontrar atmosferas em pequenos mundos alienígenas é um desafio. Mas os caçadores de atmosferas estão confiantes de que podem encontrá-las com o JWST. Começando com rochas quentes que são mais fáceis de observar e, em seguida, refinando seus métodos, “podemos chegar a planetas que se encontram por onde achamos que fica a linha costeira cósmica”, disse Kempton, “e mapear onde está esse limite”.
Vida na praia cósmica
Embora os cientistas estejam caçando a linha costeira cósmica, alguns – inclusive Zahnle – também reconhecem que o conceito provavelmente é uma simplificação: ignora a quantidade de ar com que os planetas começam; parte do pressuposto de que tudo o que importa é o escape; e pressupõe que, se um planeta perde a atmosfera, a perde para sempre.
A realidade provavelmente é mais complexa. A linha costeira cósmica provavelmente é menos uma cerca organizada e mais uma zona fronteiriça caótica, disse Joshua Krissansen-Totton, cientista planetário da Universidade de Washington. Notavelmente, seus modelos de computador sobre planetas ao redor de anãs M sugerem que, com o tempo, podem recuperar atmosferas perdidas.
“Nem mesmo perdas maiores significam que esses planetas necessariamente vão acabar sem ar”, disse. A atmosfera de um planeta mais velho é uma função complexa da evolução do planeta e de suas condições iniciais.
Zahnle concorda. “É a velha questão de natureza versus criação”, afirmou. “Claro que a resposta é natureza e criação”.
Seja a linha costeira cósmica uma fronteira nítida ou um limite mais difuso, ela tem consequências importantes para a compreensão da vida no universo.
Além do sistema solar, 70% das estrelas de nossa galáxia são anãs M – sistemas muitas vezes enquadrados como “imóvel galáctico pronto para morar”, disse Bean. Se as anãs M inevitavelmente explodirem as atmosferas de seus planetas, esse imóvel não será tão habitável assim.
Dependendo do que o James Webb encontrar, a busca pelas impressões digitais atmosféricas da vida pode começar agora. Ou pode ser necessário esperar pela próxima geração de observatórios espaciais, décadas no futuro, para caçar bioassinaturas nas atmosferas de mundos semelhantes à Terra.
Como mostra a busca pela linha costeira cósmica, aprender qualquer coisa sobre exoplanetas ainda é extremamente difícil. Mas a multidão de exoplanetas oferece uma vantagem inegável: números. Jamais conseguiremos enfiar um sistema solar dentro do laboratório, mas nem precisamos. O universo criou muitos mundos, e cada um deles é um experimento de formação de planetas.
“Esta”, disse Bean, “é a promessa dos planetas extrassolares”. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU