As bilionárias reduções de verbas destinadas à pesquisa por parte do governo de Donald Trump nos Estados Unidos tendem a provocar uma mudança do eixo geopolítico da ciência mundial. Entre, as áreas consideradas mais ameaçadas, estão saúde, mudanças climáticas, gênero e ciências sociais. Mesmo que as equipes se reorganizem e consigam novos financiamentos no futuro, a interrupção de trabalhos pode atrasar ou arruinar séries históricas de monitoramento e análise.
De forma geral, os cortes são considerados negativos, mas podem, em médio e longo prazo, criar até oportunidades para outros países. É o caso das nações da União Europeia, que podem atrair talentos em fuga dos Estados Unidos e do Brasil, que tem potencial ganhar papel mais relevante em cooperações científicas globais, na análise de especialistas.
Nos dois primeiros meses da nova gestão (iniciada em 20 de janeiro) houve demissões em massa, cortes bilionários de verba, cancelamento de projetos, eliminação de programas, sem falar na nomeação de nomes polêmicos para cargos importantes de várias agências de pesquisa. A reportagem procurou a Embaixada americana no Brasil, mas não obteve retorno.
Cortes de Trump ameaçam áreas como saúde, meio ambiente e ciências sociais Foto: Mark Schiefelbein/AP
“É difícil colocar em palavras a extensão do dano que está sendo causado à pesquisa nos Estados Unidos, de valor praticamente incalculável tanto para o país em si quanto para o mundo em geral”, diz editorial publicado pela Nature, uma das mais importantes revistas científicas do mundo. Os investimentos americanos no setor equivalem a cerca de 30% do valor total mundial para pesquisa.
Só nos Institutos Nacionais de Saúde (NIH), mais de mil funcionários foram demitidos, centenas de projetos em andamento foram cancelados e a avaliação de novas propostas foi suspensa. Esses órgãos financiam a maior parte das pesquisas biomédicas nos Estados Unidos e apoiam mais de 300 mil pesquisadores.
Desde o início da gestão Trump, em 20 de janeiro, os NIH perderam mais de US$ 3 bilhões em comparação com as bolsas concedidas no mesmo período de 2024, segundo o jornal Washington Post. Autoridades americanas têm dito que essa estratégia vai melhorar os critérios de concessão de verba e evitar gastos excessivos das universidades.
“Isso tornará a ciência melhor, não pior”, afirmou à TV Fox News Brad Smith, um dos principais assessores do Departamento de Eficiência Governamental da Casa Branca, liderado pelo empresário Elon Musk. Outras agências afetadas são a Nasa (aeroespacial), CDC (controle de doenças e epidemias) e Nooa, voltada para monitoramento de oceanos e mudanças climáticas.
Manifestação contra cortes de verba no CDC, órgão que faz controle de doenças e epidemias Foto: Ben Gray/AP
Mesmo em campos de interesse de Trump – ele anunciou meio trilhão de dólares no programa Stargate, voltado para inteligência artificial -, especialistas veem problemas pela fragilização de outros campos científicos, essenciais para o desenvolvimento sustentável da IA.
Os manifestos das entidades têm cobrado também apoio da comunidade internacional aos pesquisadores americanos. “A ciência é um bem comum da humanidade e o seu enfraquecimento em qualquer nação afeta a comunidade global”, sustenta comunicado da Academia Brasileira de Ciências (ABC), de 12 de março.
Desde meados da década de 1940, quando o presidente Franklin Roosevelt encomendou a seu conselheiro científico um relatório sobre os potenciais da pesquisa, Washington seguiu o entendimento de investir pesado na ciência como estratégia para avançar em seu poder político e econômico. Agora essa tendência muda.
Segundo a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, os cortes de Trump são parte de uma estratégia dos governos extremistas, que veem a ciência “como empecilho” para “seus objetivos políticos ou ideológicos”, em comunicado endossado por mais de 50 entidades da área. O objetivo, prossegue, “é minar a confiança da população na ciência e remover evidências científicas que possam se contrapor a seus interesses econômicos”
‘Se bloquearem as verbas, teremos de interromper projeto’, diz brasileira
Como os EUA mantêm parcerias científicas com pesquisadores de todo o mundo (tanto dentro do país quanto fora) o impacto dos cortes afeta os mais diferentes projetos e grupos de pesquisa. Um deles é o coordenado pela imunologista Ester Sabino, da Universidade de São Paulo (USP), sobre Doença de Chagas.
O programa é bancado desde 2013 com recursos do NIH no valor de US$ 1,4 milhão por cinco anos (uma média de US$ 300 mil a US$ 400 mil por ano). Os valores são depositados mensalmente, mediante prestação de contas do mês anterior. Em janeiro, segundo ela, o pagamento ainda não foi feito.
“Estamos aguardando para saber se a nossa pesquisa será renovada ou cancelada. Se bloquearem as verbas, teremos de interromper o projeto”, diz Ester Sabino, uma das cientistas responsáveis pelo sequenciamento do Sars-CoV-2 (o vírus da covid-19) no Brasil em março de 2020, no começo da pandemia.
O mesmo acontece com o pesquisador Ricardo Dias, também da USP, que integra um projeto internacional de pesquisa de monitoramento de novos patógenos com a participação de sete países nas Américas. A ideia, segundo Dias, é fortalecer resiliência do continente a novas pandemias.
“Grande parte do financiamento do nosso projeto vem de agências americanas, além da Fapesp, no Brasil, e da agência de fomento do Uruguai”, explica o pesquisador da Faculdade de Veterinária, da USP. “Com os cortes, todas as agências dos EUA foram impactadas e, com isso, 95% do nosso financiamento foi congelado, sem previsão sobre quando o dinheiro será liberado.”
Para muitos pesquisadores, Trump abre espaço para a emergência de novas potências científicas globais, sobretudo a China e a União Europeia.
“Os Estados Unidos já estavam perdendo a liderança (na ciência) para a China. Agora estão dando todas as condições para a China crescer ainda mais, é um tiro no pé”, afirmou o presidente da SBPC, Renato Janine Ribeiro, lembrando que o país asiático já suplantou os EUA, por exemplo, no número de artigos científicos divulgados anualmente.
“Me parece que, da mesma forma que o século 19 foi da Inglaterra, e o século 20 dos Estados Unidos, o século 21 será da China. Não é um regime democrático, mas busca tomar decisões com base na ciência”, continua ele, ex-ministro da Educação.
Entre 2018 e 2020, os Estados Unidos foram responsáveis por 24,9% dos artigos científicos mais citados no mundo – perdendo a liderança para a China, com 27,2%. No mesmo período, a China também superou os americanos em volume de artigos científicos publicados: foram 407.181 em média por ano, ante 293.434 dos Estados Unidos.
Muitas dos cortes e ações determinados por Trump estão sendo contestados na Justiça – e ainda podem ser revertidos. Na análise de especialistas, no entanto, a insegurança é generalizada.
“Trump sabe bem que alguns cortes não acontecerão, que serão revertidos pela Justiça, mas a instabilidade de financiamento é tóxica. Sem perspectiva (de recursos e de continuidade), as pessoas não engajam”, diz o neurocientista francês Hugo Aguilaniu.
Ele é presidente do Instituto Serrapilheira, instituição brasileira privada sem fins lucrativos, com o objetivo de fomentar pesquisas. “Mesmo que o orçamento volte, muita gente já terá procurado outro lugar para fazer ciência.”
Fuga de cérebros deve aumentar
Na China e na União Europeia, ganham força as discussões de estratégias, como uma espécie de passaporte especial, para facilitar a atração de pesquisadores estrangeiros.
Cientistas estrangeiros que iriam trabalhar ou estudar nos EUA e mesmo cientistas americanos podem começar a se voltar para países da União Europeia, por exemplo, como Reino Unido, França e Alemanha que já têm importante infraestrutura de pesquisa montada. Sem o seu maior rival na produção científica, a China deve ampliar ainda mais a sua produção.
“Podemos recrutar talentos que não seríamos capazes de atrair em circunstâncias normais”, disse Patrick Cramer, Presidente da Sociedade Max Planck, na Alemanha, ao jornal Deustche Welle.
Para Aguilaniu, o Brasil poderia, por exemplo, tomar a dianteira nas pesquisas sobre aquecimento global, e passar, inclusive, a receber cientistas estrangeiros que queiram estudar o tema por aqui – as condições geográficas são especialmente favoráveis para pesquisas de campo no tema. Mas, claro, isso demanda investimento alto em infraestrutura de pesquisa e não se sabe se o poder público teria capacidade orçamentária e disposição para isso.
Outra opção, sugere Helena Nader, seria o País investir em mais parcerias com a China e outras nações do Sul Global, diversificando a produção. “Nosso principal parceiro é o Estados Unidos, seguido do Reino Unido e de outros países da Europa. Colaboramos pouco na América Latina, menos ainda com países africanos ou asiáticos”, afirma ela, presidente da ABC.