WASHINGTON POST – Sushi, um bezerro Holstein de quatro semanas, estava deitado em um cercado sob o zumbido de um ventilador de metal quando um grupo de professores e estudantes de pós-graduação chegou para coletar amostras de seu estômago. O bezerro macho cumprimentou os pesquisadores com uma mordida amigável em suas roupas, depois se deitou preguiçosamente em uma cama de cascas de arroz.
Mesmo enquanto o animal dormia, organismos minúsculos trabalhavam arduamente em seu estômago de quatro câmaras. Fungos, bactérias e outras criaturas quebravam os alimentos em energia e produtos químicos, dando início a um processo que hoje aquece a Terra mais do que todos os voos ao redor do mundo juntos.
Cientistas estão à procura de uma maneira de transformar o intestino de Sushi para que ele não liberte mais metano, um gás do efeito estufa. O bezerro pertence à primeira onda de um experimento de vários anos, que custa aproximadamente US$ 30 milhões, realizado por cientistas da Universidade da Califórnia em Davis (UC-Davis) e do Innovative Genomics Institute para mudar o funcionamento do estômago das vacas.
Rebanho bovino: intensa produção de gás metano é um dos causadores do efeito estufa Foto: Werther Santana/Estadão
Um dos animais mais consumidos no planeta, a vaca produz enormes quantidades de metano, poderoso gás do efeito estufa responsável por 30% do aquecimento global. Usando ferramentas que cortam e transferem DNA, os pesquisadores planejam inserir geneticamente micróbios no estômago da vaca para eliminar essas emissões.
Se tiverem sucesso, poderão eliminar a maior fonte de metano produzida pelo homem no mundo e ajudar a mudar a trajetória do aquecimento planetário. “É completamente fora da caixa”, disse Ermias Kebreab, professor de ciência animal na UC-Davis. “Ninguém fez isso antes”, completa.
Existe aproximadamente 1,5 bilhão de vacas no planeta. Seus sistemas digestivos são nada menos do que milagrosos – eles podem sobreviver com grama, milho e alfafa, mas também com subprodutos danificados das culturas humanas: cascas de amêndoa, palhas de milho, até mesmo serragem.
Um rico microbioma na maior câmara do estômago delas, conhecido como rúmen, desmonta esses alimentos e os transforma em energia utilizável. “É incrível”, disse Spencer Diamond, chefe de modelagem do microbioma no instituto genômico. “Funciona maravilhosamente e nunca falha.”
Mas o rúmen tem um lado obscuro. A câmara carnosa e porosa abriga organismos unicelulares chamados archaea, que quebram hidrogênio e dióxido de carbono, produzindo metano. Incapazes de processar o gás, as vacas o arrotam. A vaca média produz cerca de 220 libras de metano por ano, ou cerca da metade das emissões de um carro médio. Atualmente, as vacas são responsáveis por cerca de 4% do aquecimento global, segundo a Organização para Alimentação e Agricultura.
Soluções parciais abundam. Empresas como a Impossible Foods e Beyond Meat desenvolveram produtos de carne bovina à base de plantas que parecem, cheiram e têm gosto de carne real. Ambientalistas têm instado os consumidores a reduzir o consumo de carne bovina e optar por frango e peixe de menor emissão, em vez disso. Mas, conforme os países ficam mais ricos, a produção de carne bovina sobe – nos últimos 15 anos, aumentou 13% globalmente.
Adicionar algas, orégano ou alho às dietas das vacas pode cortar emissões de metano, às vezes em até 80%. Mas apenas cerca de um em cada 10 animais Estados Unidos – em sua maioria, aqueles que produzem leite – são alimentados todos os dias por humanos. A proporção é semelhante globalmente. O restante, principalmente gado de corte, vagueia livremente em pastagens, sobrevivendo com grama e forragem.
Fazer com que mais de 1 bilhão de bovinos que vagam livremente comam algas ou alho é logisticamente quase impossível. É aqui que entra uma equipe de editores de genes. Os cientistas imaginam uma espécie de pílula probiótica, dada à vaca ao nascer, que pode transformar seu microbioma permanentemente.
Usando ferramentas de edição de genes, os pesquisadores já criaram gado sem chifres ou com pelos especiais, que ajudam os animais a permanecer frescos no calor. O projeto atual não visa apenas uma espécie específica de vaca – ele mira no microbioma em si, oferecendo uma solução que poderia ser aplicada a todas elas.
Brad Ringeisen, diretor executivo no instituto genômico, começou sua carreira com biotecnologia na agência de pesquisa de defesa dos Estados Unidos, que ajudou a criar produtos transformadores, como a internet, GPS miniaturizado, aeronaves furtivas e o mouse de computador. “Estou trazendo a mentalidade da agência para cá”, disse ele. “Vamos resolver isso para todas as vacas, não apenas para uma fração delas.”
No fundo do intestino da vaca
Na fazenda de lácteos de Davis, dois estudantes de pós-graduação e um pós-doutorando lutaram com um tubo de metal para inseri-lo no estômago de Sushi e conectaram uma bomba. Saiu um líquido cor de aveia – uma amostra do rúmen de Sushi, cheia de micróbios e alimentos parcialmente digeridos. O bezerro pareceu surpreso, mas não particularmente desconfortável. Esse é um dos métodos menos invasivos para testar o rúmen da vaca; outro envolve fazer um orifício.
Paulo de Méo Filho, pós-doutorando brasileiro, usou uma pipeta tão longa quanto seu braço para transferir cuidadosamente amostras do rúmen para pequenos frascos. Em seguida, envolto em uma névoa, mergulhou os frascos em um recipiente do tamanho de um balde com nitrogênio líquido para preservá-los até a análise de DNA.
Nas últimas quatro semanas de sua vida, Sushi foi alimentado com alguns gramas de óleo destilado de alga vermelha, um dos métodos mais testados e comprovados para reduzir a produção de metano no estômago das vacas. Agora, os cientistas estão tentando entender exatamente como esse óleo transformou o intestino de Sushi. Em seguida, planejam replicar essas mudanças com a edição de genes.
O cientista brasileiro Paulo de Méo Filho, durante experimento com bezerro na Universidade da Califórnia: pelo fim dos arrotos. Foto: NOAH BERGER/AFP
Apesar de a humanidade depender tanto das vacas – elas produzem cerca de 76 milhões de toneladas de carne bovina e 930 milhões de toneladas de leite por ano -, o funcionamento interno da maior câmara do estômago da vaca ainda é, em grande parte, um mistério. Ao longo de milhões de anos, o microbioma da vaca evoluiu para ajudar o animal a transformar alimentos em energia. É uma sopa caótica de minúsculos organismos, todos lutando por recursos limitados, invisíveis a olho nu.
“O mundo microbiano é um deserto brutal, ao estilo Mad Max”, disse Diamond, um dos pesquisadores genéticos. “Micróbios simplesmente se matando uns aos outros.”
Não será fácil mudar. O sistema é complexo, e os cientistas raramente conseguiram transformar de modo bem-sucedido os microbiomas de ruminantes como vacas, ovelhas e cabras. Quando as vacas comem, mastigam sua comida, misturando-a com saliva, e então engolem. Uma vaca pode produzir impressionantes 40 galões de saliva por dia, dependendo de sua dieta.
Parte da comida é ainda mais decomposta por meio da “ruminação”, na qual a vaca regurgita a comida, a mastiga ainda mais e então a engole novamente. Mas os cientistas apontam que não precisa ser assim. Não há nada inerente às vacas que exija que elas liberem gases do efeito estufa – é apenas o acúmulo de hidrogênio e os micróbios que evoluíram para consumir esse gás volátil. “Não há razão para uma vaca produzir metano”, disse Ringeisen. E se os cientistas pudessem simplesmente desligá-lo?
Mapeando o microbioma
A cerca de uma hora do cercado de Sushi, Diamond e seus colegas estão usando esses frascos congelados de comida meio digerida para mapear o interior do estômago do bezerro.
O Innovative Genomics Institute – co-fundado por Jennifer Doudna, a química vencedora do Prêmio Nobel que ajudou a criar a edição de genes CRISPR – ocupa um prédio de vidro em camadas no centro de Berkeley, Califórnia, do outro lado da rua do câmpus principal.
Lá embaixo, em um dos laboratórios, Brady Cress, chefe de edição do microbioma do instituto, estava tocando música country gerada por IA sobre a transformação do microbioma da vaca. O refrão saía em um timbre metálico dos alto-falantes do seu telefone: “Rúmen da vaca, pare de fumegar.”
CRISPR – repetições palindrômicas curtas agrupadas e regularmente intercaladas – é um conjunto de sequências de DNA encontradas em bactérias e archaea. Quando combinado com uma enzima conhecida como Cas9, CRISPR pode ser usado como um par de tesouras guiadas, cortando e retirando pedaços de DNA antes de substituí-los por novos segmentos.
Desde que Jennifer e a cientista francesa Emmanuelle Charpentier descobriram o CRISPR-Cas9, em 2012, a tecnologia ou suas variantes foram usadas para criar coelhos que brilham no escuro, grãos de café sem cafeína e até os embriões de duas gêmeas para supostamente torná-las imunes ao HIV. O pesquisador chinês responsável por esse último experimento foi preso por usar ilegalmente o CRISPR em humanos.
Hoje, os cientistas do instituto estão tentando usar ferramentas de edição de genes para resolver problemas sociais. Muito se falou sobre como o CRISPR poderia ajudar a resolver problemas de saúde humana, como doença falciforme, câncer ou HIV. Mas alguns cientistas pensam que a aplicação mais poderosa da ferramenta pode ser para o metano.
O metano, potente gás do efeito estufa, permanece na atmosfera por sete a 12 anos, enquanto o dióxido de carbono pode persistir por centenas de anos. Controlar essas emissões, que vêm da pecuária, do petróleo e do gás, também poderia desacelerar dramaticamente a taxa de aquecimento. “Pessoalmente acho que essa é a (solução) que pode ter o maior impacto no mundo”, disse Ringeisen. “Imagine se você pudesse acenar com uma varinha mágica e eliminar todas essas emissões.”
Ainda há muitas questões sobre a abordagem. “Esse é o Santo Graal, se for possível manipular o microbioma do rúmen”, disse Alexander Hristov, professor de nutrição de laticínios na Universidade Estadual da Pensilvânia, que não está envolvido no projeto. “Mas temos que ter em mente que esse microbioma se desenvolveu ao longo de milhões de anos – é muito, muito difícil mudar de forma permanente.”