“Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver, dedico como saudosa lembrança essas memórias póstumas”. Uma das dedicatórias mais famosas da literatura brasileira, de 1881, já trazia bem clara a noção de que a decomposição de um corpo começa com a deposição das larvas de algumas espécies de moscas no tecido morto. Embora, claro, de forma muito mais literária — e horripilante –, nas palavras de Machado de Assis, em Memórias Póstumas de Brás Cubas.
A ideia central da dedicatória machadiana é a mesma que norteia a entomologia forense — um antigo ramo da biologia, embora não muito conhecido, que estuda os insetos responsáveis pela decomposição de cadáveres. No caso de um crime, por exemplo, o estágio das larvas e o grau de infestação podem determinar a data da morte da vítima.
Legenda: A pesquisadora Patrícia Thyssen, coordenadora do Laboratório de Entomologia Integrativa, no Instituto de Biologia da Unicamp Foto: Patrícia Thyssen/Unicamp
“O corpo atrai insetos decompositores, os chamados necrófagos, que comem alimentos em decomposição”, explicou a bióloga Patrícia Jacqueline Thyssen, coordenadora do Laboratório de Entomologia Integrativa do Instituto de Biologia da Unicamp. “A partir do cálculo do tempo de vida de uma larva podemos ajudar o perito na determinação da data da morte da vítima.”
Para obter tais informações, os cientistas analisam as larvas mais velhas resultantes de ovos depositados nos cadáveres humanos por insetos, principalmente moscas. Dependendo do tamanho e do peso dessas larvas, o entomologista consegue determinar seu estágio de desenvolvimento e, portanto, sua idade.
Em geral, as moscas aparecem no segundo dia, atraídas pelo odor da decomposição. Se os cientistas concluírem, por exemplo, que as larvas mais velhas encontradas têm três dias de vida, é possível concluir que a vítima está morta há pelo menos cinco dias. No laboratório, os cientistas registram a velocidade de desenvolvimento das larvas em diferentes ambientes e temperaturas.
Moscas varejeiras no Laboratório de Entomologia Integrativa, no Instituto de Biologia da Unicamp. Crédito: Patrícia Thyssen/Unicamp Foto: Patrícia Thyssen/Unicamp
Essa não é a única informação que as moscas podem fornecer.
As espécies que colonizam os corpos variam de região para região, o que ajuda a determinar se o corpo foi movido de lugar, por exemplo. A análise dos insetos pode, até mesmo, indicar a causa de uma morte. Isso é mais comum em casos que envolvem o consumo de drogas por parte da vítima. Por exemplo, no caso de uma morte causada por uma overdose de cocaína, a droga será certamente encontrada no organismo dos artrópodes.
Embora mais comum em países desenvolvidos e nas séries de TV do tipo “CSI”, a entomologia forense tem um laboratório de referência no Brasil, no Instituto de Biologia da Unicamp. O grupo costuma ser acionado pelas polícias de todo o País para consultas e produção de relatórios de análise de cenas de crime.
Larva de mosca recolhida em cena de crime. FOTO Aline Prado/Unicamp Foto: Aline Prado/Unicamp
A entomologia forense também é usada para a produção de provas em casos de maus tratos de pessoas e animais.
“Já encontramos, infelizmente, pessoas que demandam cuidados especiais, por conta da idade ou da incapacidade física ou mental, com infestação por parasitas, o que é chamado popularmente de bicheira”, contou a bióloga da Unicamp. “Coletando essas larvas e analisando as condições do local onde a pessoa é mantida é possível determinar há quanto tempo ela está sem receber os devidos cuidados; o mesmo funciona para animais.”
Em mais de 90% das investigações, o principal inseto utilizado é a mosca e suas larvas. Em alguns casos, os pesquisadores usam também besouros.
Uma nova área explorada pela entomologia forense é a dos crimes ambientais como, por exemplo, contaminação de solo, dos rios e mares.
“Nesses casos, a técnica é um pouco diferente”, disse Patrícia. “Trabalhamos com bioindicadores, insetos mais frequentes em determinado tipo de ambiente. Com a contaminação, há uma alteração dessa comunidade. Dependendo do grau de perturbação do ambiente, conseguimos determinar os danos.”.