Representações abstratas de indivíduos, objetos e ideias são armazenadas em células cerebrais individuais conhecidas como neurônios conceituais. A pesquisa sugere que eles são fundamentais para a memória.

 Foto: Carlos Arrojo/Quanta Magazine

Imagine que você está no primeiro encontro com um cara, tomando um martini no bar. Você come uma azeitona e pacientemente o escuta falar sobre seu trabalho no banco. Seu cérebro processa essa cena dividindo todas essas coisas em conceitos. Bar. Encontro. Martini. Azeitona. Banco. No fundo do seu cérebro, neurônios conhecidos como células conceituais estão trabalhando a todo vapor.

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Você pode ter células conceituais que disparam para martinis, mas não para azeitonas. Ou que disparam para bares – talvez até mesmo para aquele bar específico, se você já esteve ali antes. A ideia de “banco” também tem seu próprio conjunto de células conceituais, talvez milhões delas. E ali, naquele bar mal iluminado, você está começando a formar células conceituais para o cara à sua frente, quer você goste dele ou não. Essas células vão disparar quando algo fizer você se lembrar desse cara.

Os neurônios conceituais disparam para seus conceitos, não importa como eles apareçam: na vida real ou numa foto, em texto ou fala, na tela ou no podcast. “É mais abstrato, bem diferente do que aquilo que você está vendo”, disse Elizabeth Buffalo, neurocientista da Universidade de Washington.

Por décadas, neurocientistas zombaram da ideia de que o cérebro poderia ter uma seletividade tão intensa, até o nível de um neurônio específico: como poderia haver um ou mais neurônios para cada um dos conceitos aparentemente incontáveis com que lidamos ao longo da vida? “Os cientistas diziam ‘É ineficiente, não é econômico’”, contou o neurobiólogo Florian Mormann, da Universidade de Bonn.

Mas quando os pesquisadores identificaram células conceituais no início dos anos 2000, as risadas começaram a se dissipar. Nos últimos vinte anos, eles estabeleceram que as células conceituais não apenas existem, mas são essenciais para a maneira como o cérebro abstrai e armazena informações. Novos estudos, entre eles um publicado recentemente na Nature Communications, sugeriram que elas podem ser centrais para como formamos e resgatamos as memórias.

Sabemos que o cérebro processa informações sobre o mundo exterior por meio da complexa dinâmica de circuitos de neurônios, disse o matemático Valeriy Makarov Slizneva, da Universidade Complutense de Madri, que fez cálculos teóricos para provar que as células conceituais existem. Mas também é possível que células singulares tenham papéis efetivos na reconstrução da realidade pelo cérebro.

“A natureza usa conceitos simples, mas eficientes, em vez de lidar com cálculos distribuídos complexos”, disse ele. “Somos mais simples do que pensávamos”.

A paródia ganha vida

O conceito de célula conceitual era uma piada para os neurocientistas – até que a piada perdeu a graça.

Em 1969, o neurocientista Jerome Lettvin proferiu aquela que viria a se tornar uma palestra famosa no Instituto de Tecnologia de Massachusetts. Em tom de zombaria, ele contou aos alunos uma anedota sobre um neurocirurgião fictício atendendo um paciente que tinha um relacionamento difícil com a mãe. Para ajudar, o neurocirurgião deletou do cérebro do paciente a célula que codificava sua mãe, apagando assim todas as memórias dela. Satisfeito com seu feito, ele continuou sua pesquisa procurando por “células-avós”.

“Desde então, as pessoas continuam falando sobre células-avós”, disse Rodrigo Quian Quiroga, neurocientista do Instituto de Pesquisa do Hospital del Mar, em Barcelona. Teoricamente, uma célula-avó é um neurônio único, escondido em algum lugar entre os 86 bilhões de neurônios do seu cérebro, que codifica uma de suas avós. Você o apaga e – puff – tudo o que você sabe sobre essa pessoa desaparece.

Rodrigo Quian Quiroga, neurocientista do Instituto de Pesquisas Hospital del Mar, identificou a primeira célula-conceito, que representava a ideia de Jennifer Aniston.

 Foto: Cortesia de Rodrigo Quian Quiroga

Não era uma hipótese levada muito a sério. Uma célula para cada pessoa que você já conheceu? “Não é ridículo?”, disse o neurocientista Christof Koch, do Allen Institute for Brain Science, em Seattle. “Todo mundo tirava sarro dessa ideia”.

Na verdade, nem todo mundo. Na década de 1990, um grupo de pesquisa da Universidade da Califórnia, em Los Angeles, liderado pelo neurocirurgião Itzhak Fried, desenvolveu um novo tipo de eletrodo que conseguia observar a atividade de neurônios específicos – um nível de resolução sem precedentes na época. Cientista e cirurgião, Fried sempre teve curiosidade pela memória e por nossa vida mental. “De alguma forma, todo o mundo externo é transformado em alguma representação” no cérebro, disse ele. Essa representação poderia se refletir em conceitos vagos e abstratos, sem os detalhes do mundo real. Mas como isso aconteceria?

Fried e Quiroga colaboraram com Koch para investigar. Os pesquisadores receberam consentimento de pacientes com epilepsia – que já tinham eletrodos implantados no cérebro como parte de seu tratamento médico – para registrar e analisar sua atividade neural. Os eletrodos acessavam o lobo temporal medial de cada paciente, a parte do cérebro que abarca a amígdala, o córtex entorrinal e o hipocampo, que é o centro da emoção e da memória.

Eles então mostraram imagens de objetos aos pacientes. Em 2000, os pesquisadores relataram que neurônios específicos pareciam representar categorias amplas, como rostos, cenas, casas ou animais, disparando para múltiplas imagens dentro de cada categoria.

Os resultados sugeriram que talvez existisse algo como as células-avós – mas apenas se essas células estivessem respondendo a mais do que apenas as imagens.

Concepção Celular

No início dos anos 2000, Quiroga estava mexendo com um algoritmo que ele tinha criado para analisar dados de eletrodos que o permitiam identificar muito mais neurônios do que era possível – até mesmo células que raramente disparavam e, portanto, eram mais difíceis de detectar. “Consegui ver neurônios que as pessoas não conseguiam ver antes, porque estava usando truques que tinha aprendido com física e matemática”, disse ele. “E aí eu falei: ‘Bem, quero ver o que esses neurônios fazem’”.

No início, ele mostrou a pacientes com epilepsia imagens de cientistas como Richard Feynman e Albert Einstein, para ver se os neurônios respondiam a pessoas específicas. Quando os pacientes não conseguiam identificá-los, ele tentava mostrar fotos de lugares e pessoas mais reconhecíveis, como Jennifer Aniston, estrela da série de sucesso Friends.

Para sua alegria, ele encontrou um neurônio que respondia à atriz. Isso levantou uma nova questão: “O neurônio está reagindo a esta foto de Jennifer Aniston ou está reagindo ao conceito de ‘Jennifer Aniston’?”, ele lembrou. Em um segundo experimento, ele mostrou a pacientes sete fotos diferentes de Aniston e descobriu que o mesmo neurônio disparava para todas as fotos – mas não para imagens de outras atrizes ou objetos. Ele então começou a identificar neurônios para outros lugares e pessoas famosas. Ele encontrou um que respondia apenas a Halle Berry e outro que disparava somente para a Torre de Pisa.

Quiroga escreveu o nome “Oprah Winfrey” em um papel. Os mesmos neurônios que dispararam para a foto dela também dispararam para o nome dela. Isso significava que os neurônios não estavam respondendo a características da foto, como brilho ou cor: eles não dependiam do contexto. Eles estavam respondendo ao conceito de Oprah.

Ele sabia que essa observação não significava que havia apenas um neurônio para cada conceito. Se isso fosse verdade, “a chance de encontrá-lo seria próxima de zero”, ele disse. “Eu costumava brincar que, se fosse assim, eu deveria largar a ciência e começar a apostar, porque seria a pessoa mais sortuda do mundo”. Ele acreditava que o cérebro deveria ter muitos neurônios para cada conceito, mas não sabia quantos.

Em 2005, a equipe publicou seus resultados na Nature, e as células ficaram conhecidas coloquialmente como “células Jennifer Aniston”. No começo, por causa das conotações negativas em torno das células-avós, “foi a coisa mais difícil fazer as pessoas aceitarem a possibilidade de tais células”, disse Koch. Em um artigo relacionado, o neurocientista Charles Connor escreveu: “Ninguém quer ser acusado de acreditar em células-avós. Mas…”

Eram células-avós? “Sou totalmente contra essa ideia”, disse Quiroga. Claro, essas células eram altamente seletivas, disparando apenas para Aniston ou, às vezes, também para pessoas intimamente relacionadas que pudessem evocá-la, como outros atores do elenco de Friends. Mas o conceito paródico de célula-avó presumia uma proporção de um-conceito-para-um-neurônio – e não era isso que acontecia com essas células.

Um ano depois de publicar os dados, a equipe fez algumas contas. Com base em uma estimativa de psicólogos de que o cérebro consegue distinguir cerca de 20 mil conceitos semânticos, eles calcularam que milhões de células codificariam cada conceito, e que cada célula conceitual poderia codificar dezenas de conceitos diferentes, embora muitas vezes relacionados.

“Quando o seu cérebro encontra coisas o tempo todo – mesmo coisas de alto nível, como cães, gatos, pessoas, árvores e navios – teremos neurônios para isso”, disse Christof Koch, neurocientista do Allen Institute for Brain Science. “Certamente terei muitas células [conceituais] para o Sr. Felix”, referindo-se ao seu cachorro (foto).

 Foto: Cortesia de Christof Koch

Por exemplo, células que disparam para Harry Potter também poderiam disparar para seus amigos Ron Weasley ou Hermione Granger. Talvez elas disparassem até para Gandalf, o mago de O Senhor dos Anéis. “Mesma profissão, história diferente”, disse Mormann. “Às vezes, você tem uma sintonia fina para uma única pessoa e mais ninguém, e às vezes você tem uma sintonia mais ampla, talvez para uma categoria como ‘bruxos’”. A mesma célula conceitual também pode disparar para “varinha” ou “velhos de túnica e barba”, ele acrescentou.

Células conceituais podem codificar tudo, mas não são usadas para reconhecimento de objetos. Elas são lentas demais para isso: essas células disparam após um atraso de cerca de 300 milissegundos. “Não sabemos por que demora tanto”, disse Ueli Rutishauser, neurocientista do Cedars-Sinai Medical Center, em Los Angeles. Em vez disso, essas células parecem mergulhar em um processo mais interno, formando uma representação abstrata, informada por experiências passadas e pela memória.

Cada pessoa tem um conjunto diferente de conceitos e células que os codificam. Nem todo mundo viu Friends ou segue as celebridades. Em vez disso, as células conceituais se desenvolvem para pessoas ou objetos com os quais nos importamos ou com os quais temos alguma história. “A representação depende da experiência passada daquele organismo e de coisas que foram associadas antes”, disse Buffalo. Por exemplo, seu cérebro pode formar uma associação entre seu encontro e o bar onde você conheceu aquele cara, de modo que suas células conceituais para o cara também podem disparar para o bar. Mas isso só vai acontecer se o bar estiver fortemente ligado à pessoa, disse Mormann: se for um lugar aonde você vai o tempo todo, é improvável que o mesmo neurônio dispare para ambos.

Durante anos após a publicação do trabalho, Quiroga, que não estava feliz em ser conhecido como “o cara do neurônio Jennifer Aniston”, tentou emplacar o termo “células conceituais” – o que só aconteceu em 2012, quando ele publicou um artigo na Nature intitulado “Células conceituais: os blocos de construção das funções da memória declarativa”.

O artigo apresentou sua hipótese de que o cérebro usa células conceituais para converter informações do mundo em memória. O processo requer abstração: extrair informações relevantes da experiência, despojá-la de detalhes desnecessários e armazená-las. Ele propôs que as células conceituais – enquanto representações abstratas de ideias, como pessoas ou objetos específicos – podem se conectar para formar novas associações (como palavras em uma frase) e servir de bloco de construção para memórias (como uma história composta de frases).

“Este é o esqueleto de como armazenamos memórias”, disse Quiroga.

Construindo uma memória

Para muitos cientistas, faz todo sentido que células conceituais se conectem e se entrelacem para formar memórias intuitivamente. Como as memórias são muito importantes para nossa sobrevivência, é “a melhor explicação de por que nosso cérebro pode se dar ao luxo de ter uma especialização tão alta para conceitos semânticos independentes”, disse Sina Mackay, estudante de pós-graduação na Universidade de Bonn que trabalha com Mormann.

Em um estudo recente na Nature Communications, sua equipe encontrou as dicas experimentais mais fortes até agora de que células conceituais podem vincular objetos específicos a localizações em nossa memória de longo prazo. Por décadas, pesquisadores estudaram células que armazenam informações de localização em nossos cérebros. O estudo descobriu que os padrões de disparo de células conceituais e células de localização se correlacionavam com a capacidade dos pacientes de lembrar a localização de determinado objeto. As células conceituais são o “o quê” para nossas memórias, enquanto as células de localização são o “onde”, escreveram os autores.

As células conceituais também estão ligadas à memória de trabalho, que é ativada temporariamente quando você está fazendo compras no supermercado ou tentando se lembrar de um número de telefone. Esse tipo de memória tem “baixa capacidade e alta demanda”, disse Rutishauser. “Se você se distrair um pouco, ela desaparece”. Em 2017, sua equipe descobriu que as células conceituais permanecem ativas por vários segundos enquanto você tenta manter itens na memória de trabalho. E em um estudo publicado na Neuron no final de 2024, sua equipe descobriu que as memórias de trabalho têm mais probabilidade de migrar para a memória de longo prazo quando as células conceituais dos pacientes estão ativas.

A memória de trabalho também é ativada quando você imagina um cenário ou conta uma história. “Shrek e Jennifer Aniston entram num bar. Talvez Shrek peça uma cerveja”, sugeriu Pieter Roelfsema, que estuda visão, percepção e memória no Instituto Holandês de Neurociência. Enquanto você lê esta frase, os conceitos de Aniston, Shrek e bar se unem, um por um. É provável que as células conceituais tenham um papel nessa imaginação. “Você está construindo algo na sua memória de trabalho que vai ficando cada vez mais rico e talvez mais realista”, ele disse, “e então a história se desenrola”.

O grupo de Roelfsema recentemente descobriu que células conceituais respondem também a pronomes. No estudo, o pronome “ele”, que substituía “Shrek”, iluminou as mesmas células conceituais que “Shrek”. “O pronome então direciona a atenção para o conceito ‘Shrek’, que será o sujeito da próxima frase”, disse Roelfsema. “Eu acho que é simplesmente lindo que dê para medir isso”.

Células-canivete suíço

Pesquisadores estão debatendo como os neurônios conceituais se encaixam em outros modelos de como o cérebro representa o mundo externo. Eles são “uma descoberta fantástica”, disse György Buzsáki, neurocientista da Universidade de Nova York que pesquisa o hipocampo há décadas. Mas a representação de conceitos ocorre em diferentes escalas no cérebro – no nível de um único neurônio e também no nível de populações celulares, disse ele. “O que é mais importante?”, ele se perguntou.

Um dos obstáculos para a resposta é que as células conceituais são difíceis de localizar. Atualmente, elas só podem ser estudadas em ambiente clínico, onde os pacientes passam por cirurgia para ter eletrodos implantados por razões médicas. Isso limita quem pode estudar as células e como.

Além disso, não é fácil defini-las, disse Cory Miller, neurocientista da Universidade da Califórnia, em San Diego. Parte do problema é a própria definição de “conceito” – ninguém sabe dizer se temos células conceituais para experiências como emoções, por exemplo.

Uma possibilidade intrigante é que as células do hipocampo podem ser remapeadas para fazer trabalhos diferentes em contextos diferentes. “Quando você começa a olhar para a história e o quadro geral, aí você começa a coçar a cabeça”, disse Buzsáki. “Existem células de tempo, células de lugar, células de vetor de limite, células de conceito. Então, em algum momento, você diz: ‘Ah, isso não pode estar certo, o hipocampo tem um número limitado de neurônios’”.

É possível que esses neurônios possam desempenhar papéis diferentes e assumir identidades diferentes de acordo com a tarefa em mãos, disse Buffalo. Quando o neurônio precisa ser uma célula conceitual para Jennifer Aniston, ele é uma célula conceitual. Quando precisa ser uma célula de lugar para ajudar você ir em direção ao martini no bar, é uma célula de lugar. “Essa célula é uma espécie de canivete suíço”, sugeriu Miller.

Os poucos grupos com acesso a pacientes e a tecnologia para registrar a atividade de neurônios específicos continuam seus experimentos com entusiasmo. Mormann quer entender se as células conceituais podem ser bem abstratas: em dados preliminares, ele encontrou algumas células conceituais que respondem a conceitos amplos e amorfos, como governo e impostos, mas mais células que respondem a conceitos concretos, como Jennifer Aniston. Enquanto isso, Quiroga espera provar que as células conceituais são exclusivas aos humanos – uma ideia muito debatida, com implicações potencialmente profundas. Se nenhum outro animal consegue representar conceitos no cérebro, ele disse, “eu diria que esta é a base da nossa inteligência”.

Agora que você leu este artigo, é possível que você tenha formado células conceituais que codificam células conceituais – um conceito que, de alguma forma, nosso cérebro consegue compreender. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

História original republicada com permissão da Quanta Magazine, uma publicação editorialmente independente apoiada pela Simons Foundation. Leia o conteúdo original em Concept Cells Help Your Brain Abstract Information and Build Memories

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